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Os nobres sentimentos [Danuza Leão]


Desde a mais tenra infância fomos ensinados a refrear certos sentimentos; era feio ter inveja, raiva, ódio e por aí vai. Mas será mesmo?
E quem é a santa que só tem no coração bondades e caridades para com seu semelhante? Querendo ou não, os sentimentos - bons ou maus - aparecem, mas nos ensinaram que os piores - aqueles - devem ser afastados, em nome já esqueci de quê. E como fingir que eles não existem, como ignorar o que está dentro do peito?Que tal tentar conviver com eles reconhecendo que somos apenas pessoas, para o mal e para o bem?
Digamos que sua grande amiga seja maravilhosa, tenha dez centímetros mais do que você e dez quilos menos; além disso, é charmosa, inteligente e generosa, o que, aliás, não é nenhuma vantagem, com tantas qualidades, e consegue seduzir, sem esforço, todos os homens do pedaço, inclusive ele - aquele. Que raiva; que inveja. Fazer o quê?
Em primeiro lugar reconhecer, com todas as letras, o que está sentindo e as razões desses sentimentos. Feito isso, se entregar totalmente a essa raiva e a essa inveja. Só assim vai passar.
Não é preciso ir muito longe e dizer, olhando nos olhos, "eu te odeio porque você é mais bonita do que eu". Mas, quando estiver sozinha, pode ficar com toda a raiva do mundo e odiá-la com todas as forças do seu coração - vai aliviar seu peito e evitar um infarto (e quando adorar uma pessoa, deve também ir fundo, dizer que gosta e que adora sem nenhum medo, pois gostar e não dizer não tem a menor graça).
Quem escolher o caminho de viver honestamente seus sentimentos vai perder amigos, mas, em compensação, os que ficarem vão ser para sempre. E de que adianta o telefone tocar o dia inteiro se, para isso, é preciso fingir que é diferente do que é para agradar, ser querida, ter com quem ir ao cinema? Quando tiver vontade de torcer o pescoço de seu filho adorado - porque isso às vezes acontece -, permita-se reconhecer que naquele momento seria capaz de esganar aquele que é a carne da sua carne e o sangue do seu sangue.
Afinal, quanto mais próximas as pessoas, mais ocasiões e razões temos para amá-las ou odiá-las.
Como é bom falar muito mal de uma pessoa, dizer que ela não vale rigorosamente nada e terminar a frase dizendo que é exatamente por isso que gosta dela. Quando se ouve uma declaração de amizade dessas, nunca mais se esquece, e saber que se é especial para alguém é tudo que se quer da vida.
E tem mais: sofrer, chorar, rir, se abraçar, se beijar, soluçar, passar noites em claro, de tanta felicidade ou de tanto sofrimento, acordar às vezes achando que o mundo é todo seu e no outro não conseguir nem levantar da cama de tanta tristeza sem nenhum motivo é o que diferencia uma vida plena e rica de outra morna e medíocre.
Dinheiro se economiza, mas emoções, sejam de felicidade ou de tristeza, de amor ou de raiva, nunca. Vá sempre fundo, seja lá para o que for, a não ser que você esteja na vida a passeio, o que não deixa de ser uma escolha; uma triste escolha, aliás.
Porque a capacidade de sentir é um bem precioso, e todos os sentimentos são nobres - inclusive os piores.


Pela segunda vez reproduzo um texto de Danuza Leão (o anterior foi Rejeição e Culpa), cronista que admiro. Nem pensei em fazer um post a respeito desta sua crônica, nem poderia, pois ela traduziu perfeitamente o que venho aprendendo ultimamente, ou seja, trabalhar nossas emoções e sentimentos verdadeiros, pois eles nos guiam a caminhos desconhecidos e podem nos fazer muito felizes, ou não. Cabe a nós (re)conhecê-los e entender o que acontece em nosso íntimo e assim vivermos melhor e intensamente. Sem culpa.


*Crônica escrita por Danuza Leão, publicada em 11-09-2005, no jornal Folha de São Paulo e, recentemente, na revista Cláudia, de fevereiro de 2010.

Comentários

  1. ''... acordar às vezes achando que o mundo é todo seu e no outro não conseguir nem levantar da cama de tanta tristeza sem nenhum motivo é o que diferencia uma vida plena e rica de outra morna e medíocre... ''

    Moça, estou surpreso... que belíssima definição... que inveja boa... e viva os nossos sentimentos reprimidos ( e que eles nos perdoem tanta falta de carinho com eles )

    Beijoca...

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  2. Esse texto me lembrou uma vez que fiz uma "discussão de relacionamento" com um amigo. A gente falou de tudo, sobre o que gostávamos um no outro e o que odiávamos. Foi engraçado, mas foi muito legal! AUHuAhuahuauahua...

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