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Do pó ao pó

Um dos significados principais de um ritual, de acordo com a antropologia e a teologia, é presentificar o passado. Ao repetir gestos, hábitos, palavras e encontros, nas mesmas datas e com regularidade, um grupo social atualiza o que passou, "emboscando" a passagem do tempo e contribuindo para impedir a dissolução da comunidade. Volta-se a ser quem já não está mais, volta-se a viver — como por mágica — numa manjedoura, no deserto, no campo. A comunhão não é só com quem está presente, mas com tempos, espaços e comunidades ausentes e a entrega do praticante ao ritual é o que permite essa abstração. É certamente daí que vem a ideia de "presente", aquilo que se oferta ao outro, com o sentido de tornar presente, intensificar o agora da doação e da recepção, como carimbo do encontro e da repetição. Dessa forma, o fim de um processo — de uma colheita, de um giro em torno do sol — significa o começo de outro. Como dizia Padre Antônio Vieira , "a vida é um círculo que
Postagens recentes

Há sempre uma perda em cada encontro

Cada encontro está carregado da perda, ou de perdas. Às vezes duas pessoas que se amam (casados, solteiros, amantes, namorados) se encontram e são felizes. Ao fim da felicidade um deles chora, ou fica triste, ou baixa os olhos, ou é invadido por inexplicável melancolia.  É a perda que está escondida no deslumbramento de cada encontro. O encontro humano é tão raro que, quando surge, vem carregado de todas as experiências de desencontros que a pessoa já teve e que a espécie já sofreu.  Quando você está perto de alguém e não consegue expressar tudo o que está claro e simples na sua cabeça, você está tendo um desencontro. Aquela pessoa que lhe dá um extremo cansaço de explicar as coisas, é alguém com quem você se desencontra. Aquele que só emite, pouco lhe dando condições de intercalar os seus pontos de vista, é outro com quem você se desencontra. Aquele a quem você admira tanto, que lhe impede de falar, também é um agente de desencontro, por mais encontros que você ten

Perdoar é mais que esquecer

"Cada perdão é um pássaro liberto." (Van Luchiari) Já escrevi, neste blog, alguns textos sobre o perdão e sobre a dificuldade deste ato. Sempre defendi a ideia de que, para perdoar, é preciso antes ter esquecido o mal sofrido, é preciso não sentir mais nenhum tipo de tristeza; para só então, esse perdão ser verdadeiro. Existem pessoas que dizem que perdoam, mas não esquecem. E sempre discordei disso, pois sinto que esta frase guarda um rancor; uma obrigação de perdoar, porque é preciso. E pronto. Mas, revi este meu conceito, ao refletir e partilhar das experiências de outras pessoas. Assisti a uma palestra em que o tema era este – o perdão –, mas o palestrante dizia o contrário do que eu pensava. “Como esquecer? Não esquecemos nunca!” – dizia ele.  “Como esquecer, se nossas vivências permanecem em nossas memórias?”, continuava ele. “A dor está lá, está gravada em nossa memória." E eu ouvia e percebia a verdade daquelas palavras. Esquecer para poder

Sem medo

E foi mais ou menos assim que este blog iniciou... Eu escrevi. Escrever: todo mundo devia escrever uma ou duas páginas por dia, ou pelo menos todo fim de semana, contando como têm sido seus dias, falando sobre sua vida, suas alegrias, tristezas, decepções, felicidades.  Para isso não é preciso saber escrever; seria uma espécie de diário, para ler daqui a 20 ou 30 anos, e que um dia será encontrado por um neto ou bisneto que, sabendo mais de suas origens, como foram seus pais e avós, talvez compreendam melhor por que são como são. Para isso basta um caderno e uma esferográfica -- e uma gaveta com chave, pois essas confissões só devem ser lidas pelos outros com a permissão de quem escreveu, a não ser que já tenha morrido. E pense um pouco: você deve ter passado por coisas que prefere não lembrar, que estão lá dentro contidas, reprimidas, e das quais acha que já esqueceu, já que não pensa nelas -- quem não passou? Não pensa mas elas estão lá, travando seus atos, impedindo qu

Seria tudo diferente?

Quem nunca ficou se questionando como teria sido sua vida, se tivesse aceitado um convite que não aceitou ou virasse aquela rua que não virou; ou não participou daquela festa em que todos foram, mas não foi; ou, ainda, não passou na rua em que ficou de passar; não caminhou logo cedo, como ficou de caminhar? Será que algum acontecimento nessas escolhas que não fizemos, mudaria algo muito importante em nossa vida? Será que ela poderia ser toda diferente, para o bem ou para o mal? Se eu aceitasse o convite, poderia conhecer alguém interessante? Se eu virasse aquela rua, teria descoberto outros caminhos? Se eu fosse àquela festa, algo novo poderia acontecer? E se eu caminhasse logo cedo, meu dia teria sido muito diferente? Seria tudo melhor? Ou pior? Ufa!  E se eu tivesse ficado solteira e não tivesse filhos; e se eu tivesse filhos, mesmo sendo solteira; e se eu tivesse escolhido outra profissão; ou um namorado diferente; ou tido outros amigos; saísse para outros lugares; ou me

Você é supersticioso?

Dificilmente vemos alguém confessar que tem alguma superstição. Até dizem "imagina, isso não existe!". Mas, sendo bobagem ou não, na iminência de algo ruim poder vir a acontecer, há sempre alguém que bata três vezes na madeira e diga "ai, isola!".  A madeira é, até certo ponto, isolante de eletricidade. Mas, algo deixará de acontecer se eu bater na madeira?  Certas palavras não devem ser ditas como "azar", não! É "falta de sorte". Hum, quanta diferença com o eufemismo, hem?  Mas existem pessoas que evitam certas palavras, como se elas fossem responsáveis por graves ocorrências, se as pronunciarmos. Então, dizem "Ih, Fulano está com aquela doença..." Não pode falar o nome... Dá azar? O que acontece? Mas que doença é "aquela doença?!  Toda doença é ruim até a catapora que eu tive já adulta. Nossa! Falei... Ca-ta-po-ra! Eu não posso ter novamente, então tudo bem. Eu entendo que certas doenças fazem as pessoas sofrerem dem

Ter razão ou ser feliz?

É melhor ter razão ou ser feliz? Esse é o título do texto de Thais Accioli , especialista em terapia floral, formada pela Escola de Enfermagem da USP. Seu questionamento baseia-se na famosa frase que corrre pela internet, dita por Ferreira Gullar numa Flip (Feira Literária Internacional de Paraty) : "Eu não quero ter razão, quero ser feliz" . Ele confessa que, hoje, gosta mesmo é de viver em casa pintando seus quadros em vez de brigar  por causa da política do país. E o que será que nos faz mais felizes? Tentar dar opiniões é tão sadio quanto ler poesia ou ouvir música. É o momento em que nos expressamos, expomos nossos pontos de vista a repseito do que nos cerca. Simples. É, mas, talvez, não estejamos conseguindo efetuar o diálogo. A autora trata do "ter razão" sistemático, que ela relaciona a uma mania originada no individualismo, que vem acontecendo muito, e que gera confusão, polêmicas, brigas, chegando até a rupturas, e em vários tipos de relacioname