Um dos significados principais de um ritual, de acordo com a antropologia e a teologia, é presentificar o passado. Ao repetir gestos, hábitos, palavras e encontros, nas mesmas datas e com regularidade, um grupo social atualiza o que passou, "emboscando" a passagem do tempo e contribuindo para impedir a dissolução da comunidade. Volta-se a ser quem já não está mais, volta-se a viver — como por mágica — numa manjedoura, no deserto, no campo. A comunhão não é só com quem está presente, mas com tempos, espaços e comunidades ausentes e a entrega do praticante ao ritual é o que permite essa abstração. É certamente daí que vem a ideia de "presente", aquilo que se oferta ao outro, com o sentido de tornar presente, intensificar o agora da doação e da recepção, como carimbo do encontro e da repetição. Dessa forma, o fim de um processo — de uma colheita, de um giro em torno do sol — significa o começo de outro. Como dizia Padre Antônio Vieira, "a vida é um círculo que vai do pó ao pó e quanto mais nos afastamos do pó, mais nos aproximamos dele".
Celebrar o final de um ano, desse ponto de vista, é celebrar não o que se passou, mas a repetição do que nunca cessa de passar; é retornar a anos anteriores e trazê-los para o instante compactado da comemoração. Comemorar, aliás, é trazer à memória. O ano que chega é a promessa do encontro futuro, como um lençol fresco estendido sobre a cama, quando novamente se erguerão as taças reunidas, todos iguais e diferentes. Nada muda e tudo se transforma no novo ciclo de translação.
Minha sugestão, nesse ano traumático, é que possamos estar mais próximos do sentido presentificador dos rituais. Um presente que sugiro é algo infimamente pequeno e supostamente insignificante — uma folha, um tempero, um som — ou algo desmedidamente absurdo — muitas histórias impossíveis, muita gente, muito pão. O que importa é a desmedida e a não equivalência entre o que se dá e o que se recebe: te dou um ovo, amigo. E o amigo devolve com um concerto para piano e violão. Te conto minhas memórias de Araçatuba e você me retribui com seus projetos para o futuro. O final — que é sempre o começo — de um ciclo é o tempo de abolir, mesmo que por um tempo mágico e breve, a lógica equitativa das trocas valoradas. É o instante das "finalidades sem fim", como se intitula um dos livros do poeta e filósofo Antonio Cicero. Atingiu-se, outra vez, a finalidade inútil de mais um ano. Vamos comemorar essa gratuidade com representações daquilo que não serve a nada nem a ninguém: bebendo, comendo e criando. Não compre um aspirador robô, um celular, um cachepot. Presenteie o tempo, o presente vão do fato de estarmos mais uma vez aqui, lá, agora, antes, para que isso retorne depois.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
Texto originalmente publicado no Blog da Companhia das Letras
Foto: Shutterstock
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