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O mistério de cada um


"Com todo o perdão da palavra, eu sou um mistério para mim."
(Clarice Lispector)


"Quem pode afirmar saber quem é seu pai, quem é sua mãe, quem são seus filhos?" É o que questiona Danuza Leão em sua crônica "A verdade de cada um". Pergunta-se o quanto realmente conhecemos das pessoas que vivem conosco. Será que conhecemos quem é a pessoa que há tanto tempo vive junto de nós? 
Para a escritora, "ninguém sabe o que o outro pensa, o que acha, o que quer, o que pretende fazer; sobretudo, o que é capaz de fazer"
E o que a motivou a escrever sobre isso foi aquele caso, ocorrido há meses, do menino que levou a arma do pai à escola, atirou na professora e, em seguida, suicidou-se. "O que teria passado pela cabeça daquele menino? Ninguém nunca saberá." Argumenta ainda com aqueles casos de homens que saem para comprar algo e nunca mais voltam para casa. Somem e nunca mais se tem notícia deles. E realmente tudo isso é muito curioso. O que pensariam eles, que ninguém nunca pudesse desconfiar que fariam isso? Somos um mistério? Talvez.
Nós sabemos o que somos, o que queremos, conhecemos nossos limites e o que faríamos em determinadas situações. Mas não sabemos tudo o que somos em essência. Temos muito  ainda a descobrir sobre nós mesmos. E sobre aqueles com quem vivemos, bem, desconhecemos seus limites, a força e o que os motiva a agirem como agem, por mais que imaginemos conhecê-los muito bem. "Será que pessoas perfeitamente normais podem ter um momento de loucura, e nesse momento fazer coisas em que nunca tinha pensado?" Indaga Danuza... Difícil saber.
Em outra crônica, Danuza fala que todos nós temos um segredo que nunca contou nem nunca contará a ninguém, algo só nosso, de nosso íntimo. E se temos segredos, podemos ter muitos, ser um mistério, muitas vezes impenetrável para o outro. E se assim for, não podemos afirmar que conhecemos bem as pessoas. Nem mesmo que as pessoas se conhecem a si próprias.
Além disso, até que ponto as pessoas deixam que as conheçam como realmente são? 
O psicanalista Contardo Calligaris, num de seus artigos, diz que "quem somos depende de como conduzimos nossas vidas e de como é avaliada pelos outros". Nosso trabalho, riqueza, estilo, virtudes morais, cultura, e tudo o que nos circunda mostra "se somos antenados, pop, fashion, sem noção, ricos, pobres ou emergentes, cultos ou iletrados"
É assim que somos valorizados, ou não, pois vivemos numa época em que se dá valor a determinados "modelos". E se as pessoas não souberem nos ver por trás do que somente nos circunda, poderão não saber muito bem quem somos.  E por assim nos verem e assim nos avaliarem, muitas vezes incorrem em erros de julgamento. Por outro lado, há quem goste de se mostrar diferente daquilo que é, e, para isso, cria para si um "personagem" admirado e querido por todos. 
Cada um possui suas motivações para agir, para se mostrar, para se esconder, para ser outro ou para se defender do mundo até. Talvez por isso a convivência humana seja tão difícil.
No entanto, mesmo que relacionamentos sejam tão difíceis, somente o afeto pelo outro os aproxime e os desarme e assim se permitam conhecer-se bem, entender e partilhar sentimentos. É esse desejo que aproxima pessoas que podem, juntas, ser realmente o que são, podem se expor porque encontram no outro empatia, afinidade e confiança. É o caminho que leva ao companheirismo, à intimidade e ao afeto.
Da mesma forma que existem pessoas que se escondem, se defendem, não se expõem nem deixam que as conheçam verdadeiramente, há aqueles que são transparentes, abertos, sensíveis. Aqueles que se entregam nos relacionamentos, sem medo nem reservas. Estes sofrem, pois, muitas vezes, se decepcionam, porque não encontram o mesmo grau de entrega. Mas ainda acho que sofre mais aquele que não consegue, não sabe, ou não quer ser quem é.
Somos seres solitários junto de outros aprendendo a nos relacionar, aprendendo a ser felizes, aprendendo a ter paz e serenidade; e assim aprendendo também quem somos buscando nossa verdade, respeitando os limites e "a verdade de cada um".

Rita Ribeiro

Artigos citados:
- "A verdade de cada um", crônica de Danuza Leão, publicada no caderno Cotidiano, do jornal Folha de S. Paulo,  em 02/10/2011
"Segredos", crôncia de Danuza Leão, publicada no mesmo jornal em 04/04/2010
- "Saques, arrastões e ressentiment", artigo de Contardo Calligaris, publicado no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, em 01/09/2011

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