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A liberdade de não ter filhos

"Ter um filho é como fazer uma tatuagem na cara. Você precisa ter realmente certeza de que é isso que você quer, antes de se comprometer"
(Elizabeth Gilbert, em 'Comer rezar, amar')


Dizem que para a mulher ser plenamente realizada precisa ser mãe, gerir um ser para perpetuar a espécie, ou como as pessoas falam: dar continuidade à família. Particularmente não acredito nisso. É da nossa cultura que, há muito tempo, o homem vinha sendo criado para manter o sustento da família, enquanto a mulher era ensinada desde pequena que, um dia, se casaria, teria filhos, cuidaria da casa e de sua família. Nossas avós foram uma dessas abnegadas mulheres e que não tinham escolha. Pergunto-me se elas tinham um desejo arrebatador de ser mãe...
Pergunto-me, ainda, se esse desejo não é uma vontade que surgiu mais recentemente em função de a mulher hoje trabalhar fora, poder ter um método anticoncepcional para ter filhos, quando fosse compatível com seus planos e do casal. Sim, porque hoje a mulher pode escolher. 
Vejo nessa plenitude da mulher vinculada a ter filhos um mito, mais do que uma realização máxima de sua feminilidade. Confesso que nunca tive esse desejo arrebatador, e posso garantir que não é porque não me casei, pois penso que não é o relacionamento em si que faz a mulher querer ser mãe. Esse desejo precisa ser da mulher, independente de qualquer coisa. Tenho uma amiga que, durante uma conversa dessa, disse-me que, um dia, desejava muito ser mãe, mesmo que fosse uma "produção independente", porque era um sonho dela. Assim entendo o desejo arrebatador de ter um filho. 
E vendo uma revista feminina*, encontrei uma reportagem intitulada "Filhos, eu?" que mostrava exatamente isso: as mulheres que assumidamente não querem ser mães. Uma atriz, uma empresária, uma escritora, uma dentista e uma administradora foram ouvidas pela reportagem e todas argumentaram de forma parecida: em geral, dizem que hoje a responsabilidade de colocar um filho no mundo é muito grande; que trabalhando o tempo todo, sentem que não poderiam dar a atenção necessária ao filho e, uma delas assume dizendo que nem seu marido nem ela queriam crianças, foi uma opção. Algumas dizem que adoram ser tias, adoram seus sobrinhos, amam estar com eles, mas ter um filho é algo muito diferente. 
Penso que a partir do momento em que a mulher tornou-se independente, que trabalha fora e faz carreira,  passou também a ser questão de escolha ter filhos, ou não. E acho certo isso. No entanto, quantas vezes não vemos casais que adiam os planos de ter filhos e são cobrados pelos pais - que querem ser avós -, pelos amigos, irmãos e acabam se sentindo estranhos, porque vivem sem o tempo necessário para educar um filho? 
As mulheres sentem-se pressionadas, primeiro a se casar, depois a ter filhos. E isso acaba trazendo a elas um sentimento de inadequação, depois se sentem egoístas e enfim, culpadas. 
Gerir um filho, senti-lo desenvolver-se dentro de si deve ser algo muito emocionante, mas antes de tomar a decisão de passar por essa experiência, a mulher precisa estar consciente de todas as responsabilidades que ter um filho traz consigo. É preciso desejo real de gerir, criar, cuidar, educar e torná-lo um ser pronto para o mundo. Será que toda mulher pensa em tudo isso? Não sei... 
Uma das entrevistadas diz à revista que ficou muito feliz por seu companheiro não querer também, porque ela não gosta de crianças. Ela, apesar dessa franqueza toda, é consciente e assume. Muito melhor que muitas mães que têm mais de um filho e não os educam, o que me faz perguntar: por que ter filhos, então? 
Em relação à culpa, lembrei-me de um texto de Márcia Tiburi, filósofa, professora e escritora, em que ela fala da culpa como algo paradoxal, pois "uma mulher pode se sentir culpada de não querer ser esposa, mãe ou amante, ou por simplesmente ser bem-sucedida". E explica que essa culpa "surge exatamente para eliminar o desejo", diz. "Pode parecer que as mulheres sintam-se culpadas por serem excessivamente responsabilizadas, no entanto, essa culpa não tem razão de existir, porque ela aparece como algo que a mulher cria por não querer ter responsabilidades". E termina de forma interessante dizendo que as mulheres "bem que podiam trocar tudo isso [a culpa] pelas asas do desejo que, em nós, estão prontas a se abrir, deixando tudo mais leve e se permitindo voar e ver mais longe. E o impulso para o voo vem da coragem da responsabilização." 
Assim, mulheres podem e devem assumir o desejo de ter filhos, ou não, responsabilizando-se por suas escolhas, assumindo livremente o que lhes vai dentro de si, no coração e na alma. Sem medo.
Finalizo, voltando à reportagem, pois um ponto em comum entre as mulheres que deram depoimento é o fato de que todas, apesar de optarem por não serem mães buscam realização em outras coisas que dão sentido real às suas vidas. E isso, acredito, é o mais significativo.

Rita Ribeiro
[Sob Licença Creative Commons - Leia e respeite os direitos autorais]

*Filhos, eu??", Luciana Ackermann, Lola Magazine, setembro de 2011
"A culpa é de quem tem culpa", Márcia Tiburi, Lola Magazine, outubro de 2010

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